quarta-feira, 13 de maio de 2009

Hominizar?


Somos mulheres, somos homens - somos seres humanos?

Há quase 100 anos atrás, no interior da Índia, numa pequena aldeia bengali, o povo comentava que fantasmas tinham sido vistos na floresta. Curiosos, investigaram e descobriram que os fantasmas eram duas pequenas meninas vivendo como lobos com os lobos, mas absolutamente saudáveis. 

Quê coisa incompreensível! 
Quê loucura, imaginem crianças na mais tenra idade (uma com uns cinco anos, a outra com uns 8 anos) vivendo na mata com lobos, sendo criadas por lobos!
Eles resolveram "salvá-las". Elas foram caçadas, a loba que as criavam foi caçada, eles se esconderam em uma toca. Então, mataram a loba,  para "salvar" as crianças.
Elas, então foram entregues a um orfanato de um zeloso pastor anglicano.
Deram-lhes nomes: Kamala, a maior, e Amala, a menor.

Quê coisa incompreensível! 
Amala morreu logo depois, Kamala ainda sobreviveu por 10 anos. 
Tentaram fazê-la aprender a andar de pé, mas sua posição confortável era de quatro. Se ela se assustava, ela ficava de quatro e corria dessa forma. Tentaram ensiná-la a se alimentar com as mãos, mas sua forma normal era se alimentar como um cachorro que come numa tigela. Tentaram fazê-la falar, o máximo que conseguiram foi que balcuciasse alguma coisa.
Nunca, no entanto, aqueles que a observavam puderam dizer eis aí um ser humano! 
Elas eram, de fato, meninas-lobas. Elas se tornaram lobas, por viverem como lobas, com os lobos.

Humberto Maturana, neurobiólogo chileno, ao estudar essa experiência concluiu, no curso de uma pesquisa mais ampla sobre o processo do viver e do conhecer, que não nascemos humanos, mas podemos nos fazer humanos na medida em que convivemos em comunidades humanas. 

Quê coisa paradoxal!
Nós nascemos hominizáveis, ou seja, capazes de nos tornar humanos.
Nos tornamos humanos na medida em que convivemos em domínios humanos.
Que fenômeno absolutamente circular, impossível? Mas, como tudo isso pode ter começado - processos circulares não tem começo?
Mas, mais do que isso, ao nos hominizarmos, não nos tornamos simplesmente humanos.
Nos tornamos seres humanos particulares, frutos das experiências particulares de hominização pelas quais passamos. O que nos pode fazer humanos completamente distintos de outros humanos, que passaram por experiências completamente diferentes das nossas.
Ou seja, aquilo que achamos como sendo comportamentos intrinsecalmente humanos, são em sua maioria, comportamentos construídos culturalmente.
Nossos domínios particulares de hominização, são as comunidades onde nascemos, o domínio linguístico no qual estamos mergulhados, a família que nos acolheu, as crenças que nos sustentam, as escolas que estudamos, as empresas e organizações pelas quais passamos. Enfim, nos tornamos seres humanos particulares que refletem as experiências particulares pelas quais passamos e sofremos.
Hoje, no nosso mundo globalizado isso pode parecer estranho, dado que compartilhamos muitas experiências globalmente e isso nos faz ter estéticas, éticas e condutas possíveis (o que eu denoto como ontologia) muito assemelhadas, pelo menos, naquilo que exibimos para o grande público. No grupo de orientandos do meu orientador do pós-doc em um programa de pós-graduação interdisciplinar, somos um grupo interessante, temos uma grande diversidade de humanos (considerando os orientandos do TCC ao pós-doc), existem pessoas de origens religiosas diferentes (cristã, judaica e mulçumana, além dos espiritualistas), temos pessoas com formações as mais diversas (computação, medicina, design, educação física, jornalismo, engenharia, psicologia). Pessoas nascidas no Brasil inteiro e mesmo fora dele. Uma faixa etária que varia dos 20 aos 60 anos. Quando almoçamos juntos, depois de algum seminário, todos se parecem humanos iguais entre si e iguais a todos os humanos que nos cercam, no entanto, quando aprofundamos nossas conversas posso perceber que cada um vive em mundos distintos.

Se vocês assistirem ao filme A Caminho de Kandahar vão poder observar como um domínio distinto constrói pessoas distintas, com suas distintas estéticas, éticas e condutas possíveis, igualmente legítimas. Esse filme se passa na fronteira entre o Irã e o Afganistão no final da década de 90, quando essa região ainda estava sob o domínio dos Talebans. Foi um filme feito por um diretor iraniano, logo refletindo bem um olhar próprio da região. O filme revela uma teia de dramas humanos surpreendentes, principalmente para aqueles que nunca tiveram contato com uma região tão inóspita e tão sofrida. Vendo o filme, compreende-se porque são seres humanos tão duros.

Quero convidar a quem quer que tenha se interessado por esta problemática para aprofundarmos essa conversa e ao fazer isso quero também convidá-los a abrir mão, pelo menos temporariamente, de suas certezas, em prol da possibilidade desse diálogo.
Essa conversa (espero eu) deve ser o ponto partida para conversas mais longas, que nos vão fazer viver a perplexidade de nos percebermos em um processo vital de complexidade que não estamos habituados, que passa pela beira de precipícios e que por sua circularidade pode nos levar a vertigens. Quero também sugerir que assistam o filme O Ponto de Mutação (Mindwalk), produzido por inspiração do escritor e pesquisador em física teórica e cibernética, Fritjof Capra, que é também uma boa introdução ao tema que estou propondo para essa conversação.